Creio eu que não seja necessário demonstrar pra qualquer um que acompanhe minimamente as últimas notícias, que o mundo se aproxima de uma era sombria. Russos e ucranianos se enfrentam no leste europeu, 40 mil soldados poloneses protegem sua fronteira com a Bielorússia, a China cerca cada vez mais a ilha de Taiwan e interfere em seus vizinhos, Israel e Irã lutam uma guerra terrível e brutal seja com mísseis e aviões, seja por proxies iranianos que invadiram Israel no 7 de outubro e massacraram 1200 civis no maior ataque terrorista desde o 11 de setembro, e uma frota americana pressiona Nicolás Maduro no Caribe. O mundo parece à beira da guerra, mas as coisas parecem ter acontecido rápido demais para serem compreendidas. Tendo em vista tudo isso, essa série de artigos visa repassar os acontecimentos das últimas décadas para responder a inquietante pergunta: Como chegamos até aqui? Como abandonamos uma visão de mundo praticamente universalista para nos depararmos com a ameaça de uma nova guerra mundial no horizonte não tão distante?
Neste primeiro texto nos aprofundaremos nos primeiros anos da carreira de Vladimir Putin, peça central no tabuleiro geopolítico que virou o mundo de cabeça para baixo, tentaremos esclarecer o que o guia, os ideais que defende e como os executa, do passado sombrio ao presente aterrador, vamos dissecar uma das figuras mais importantes de nosso século.
A sensação de apreensão comum a todos nós com cada nova notícia que vem do leste europeu, sudeste asiático, oriente médio ou mais recentemente do Caribe não existia em 1989, quando o Muro de Berlim tombou e, apenas dois anos depois, toda a União Soviética ruiu, e uma onda de esperança varreu o ocidente.
Os horrores da Segunda Guerra Mundial e o medo da hecatombe vermelha vinda do outro lado da cortina de ferro fez com que antigas rivalidades internas das sociedades ocidentais praticamente desaparecessem. Reino Unido e França, que dois séculos antes se digladiavam nos campos de Waterloo agora estavam ombro a ombro como aliados contra a ameaça que vinha do leste, a Alemanha, outrora lar do nazismo, agora também se juntava às potências ocidentais, até mesmo gregos e turcos aceitaram deixar suas diferenças momentaneamente de lado para ingressarem na OTAN.
Nixon e Kissinger haviam, supostamente, conseguido da China uma abertura de comércio, acreditando que tinham-na afastado da influência russa e a puxado para perto de si, o tempo provou que estavam completamente errados, mas não havia indícios disso no início da década de 90.
Qual razão teríamos para acreditar que com a Rússia seria diferente? Antes mesmo da queda da União Soviética um McDonald ‘s abriu na praça Pushkin em Moscou certamente demonstrando o interesse do urso vermelho em se juntar ao nosso modo de vida, certo? O tempo, senhor da razão, provou que não. A verdade é que no início dos anos 90 a OTAN era o poder e demonstrou isso durante a Operação Tempestade no Deserto.
A Rússia era uma república emergente da falecida União Soviética desmoralizada e liderada por um impopular Boris Yeltsin com problemas cardíacos e vício em álcool, talvez um símbolo triste do que era seu país naquele período.
É importante para nossa análise entender a década de 90 pois ela é fundamental para os nossos dias e a compreensão correta dela passa por três importantes eventos: a Operação Tempestade no Deserto, a intervenção da OTAN na guerra da Sérvia e a ascensão de Putin ao poder na Rússia e como estava o país quando ele assumiu.
Operação Tempestade no Deserto e a vitória ocidental
Durante a década de 80, Irã e Iraque se enfrentaram em uma guerra sangrenta por oito longos anos que terminou sem um vencedor claro, o conflito deixou marcas profundas na economia dos dois países, em especial no Iraque de Saddam Hussein. Para financiar sua guerra contra a república islâmica do Irã, Saddam havia apanhado dinheiro com outros países árabes de maioria sunita, em especial a Árabia Saudita e o pequeno, porém rico, Kuwait.
Hussein tentou convencer os sauditas e kuwaitianos a perdoarem suas dívidas no fim do conflito alegando que, ao menos indiretamente, lutava por eles também, o que não era exatamente mentira, mas não convenceu seus credores. Isso ocorreu principalmente porque a crise financeira que assolava os cofres de Hussein, também afetou o pequeno país vizinho, que para compensá-la aumentou sua produção de petróleo fazendo o preço do barril despencar oito dólares, aprofundando a crise iraquiana.
Tudo isso culminou no dia 15 de julho de 1990 quando Saddam Hussein fez um longo discurso na Liga Árabe em que acusava seus antigos aliados sauditas de cobrarem dele uma dívida ilegal visto que o dinheiro fora utilizado para enfrentar o Irã, um inimigo em comum, e acusou o Kuwait de ultrapassar em muito sua cota de barris permitida pela OPEP. Ainda em julho, 30 mil soldados iraquianos se concentrariam na fronteira do Kuwait.
Para a maioria do público ocidental, o Iraque não é muito diferente do Afeganistão ou qualquer outro país árabe, uma grande caixa de areia quente, seca e pobre, mas isso não é verdade. A crise financeira causada pela luta com o Irã assolava os cofres de Saddam, mas suas forças armadas ainda eram realmente poderosas, seus números atingiam a casa do milhão em soldados profissionais, mais 650 mil serviam em grupamentos para-militares leais à Bagdá, operavam milhares de blindados soviéticos de última geração, e tinham quase quinhentos aviões de guerra, a título de comparação, a força que Saddam Hussein destacara na fronteira era quase o dobro da totalidade do exército kuwaitiano.
O Iraque era uma potência militar regional bastante respeitável, em menos de doze horas de combate, todo o Kuwait já havia sido conquistado. Saddam agora voltava seus olhos para a Árabia Saudita.
A ONU votou incessantemente resoluções para obrigar os iraquianos a saírem do Kuwait, todas solenemente ignoradas.
Saddam Hussein abriu negociações com os representantes da ONU exigindo compensações financeiras estratosféricas e linkando a questão com outros assuntos árabes que em nada tinham a ver com a situação, como por exemplo a ocupação israelense da Faixa de Gaza e das Colinas de Golan, o objetivo do ditador era duplo, primeiro atrair apoio árabe para sua causa e, tacitamente, acusar a Árabia Saudita de apoiar os judeus, e o segundo, e mais importante: atrasar as negociações para dar tempo de consolidar sua conquista.
Saddam sabia que teria que lutar com os ocidentais para manter o Kuwait e estava disposto a isso. Em agosto de 1990, os primeiros militares americanos chegaram a Árabia Saudita com o objetivo de proteger a fronteira ameaçada de seu aliado regional em uma operação apelidada de Escudo do Deserto. 15 de janeiro era a data limite para os iraquianos retirarem suas forças do Kuwait ocupado, quando ela foi desrespeitada, o Escudo tornou-se Tempestade.
Ao longo dos 42 dias seguintes choveu fogo nos céus do Oriente Médio. Informes oficiais da Força Aérea americana dão conta que algo em torno de 88 mil toneladas de bombas foram despejadas sobre os militares iraquianos. Mas, como já foi dito, o Iraque era uma grande potência militar e respondeu aos ataques aéreos aliados com mísseis e, no dia 29 de janeiro, com uma invasão terrestre à Árabia Saudita, conquistando a cidade de Khafji, no golfo pérsico, mantendo-a por apenas um dia graças a um contra-ataque americano, saudita e catari que rapidamente os expulsou de lá.
Curiosamente, os americanos entraram no Kuwait no dia 24 de fevereiro, assim que a ofensiva aérea chegou ao fim, o mesmo dia que os russos escolheram para a sua invasão da Ucrânia, e não, não foi uma coincidência.
A América avançou imparável pelo Kuwait ocupado, libertando cidades com poucos minutos de combate. Todo o país foi libertado em poucas horas. No dia seguinte houve um contra-ataque iraquiano, iniciando a maior batalha da guerra até então, os reforços para as posições remanescentes ainda dentro do Kuwait vinham da fronteira do Iraque, mas os americanos os interceptaram antes de conseguirem se reunir com o resto dos soldados de Saddam e teve início uma grande batalha que culminou com a vitória americana.
No dia 27 de fevereiro, Saddam deu a ordem para que seus soldados abandonassem o Kuwait.
O combate pôs frente a frente os tanques M1 Abrams americano e os Chalenger 1 dos britânicos com os T-72 soviéticos operados pelos iraquianos e a diferença da tecnologia militar ocidental para a soviética foi gritante, os aliados destruíram os T-72 antes mesmo de estarem ao alcance das armas deles, um duro golpe no orgulho bélico soviético.
No dia 28 de fevereiro a guerra estava encerrada, todo o poderoso exército iraquiano estava em frangalhos e o Kuwait libertado.
A vitória estrondosa americana encerrou de vez a dúvida do mundo bipolar, a Rússia soviética passara dez anos afundada no fraco Afeganistão gastando bilhões de dólares e perdendo milhares de vidas para não obter nenhuma vitória e, apenas dois anos antes da impressionante vitória americana, ser obrigada a deixar o país, derrotada. Não é de se espantar que, apenas alguns meses depois, a União Soviética colapsaria sobre o próprio peso e vergonha.
A Rússia nos anos 90 e a ascensão de Putin
Os últimos meses da década de 80, assim como os primeiros da década de 90, foram de uma extrema expectativa da população do país mais extenso do mundo. Haviam saído às ruas de São Petersburgo e Moscou para impedir que a junta militar depusesse o governo de Gorbachev, com direito a assistir um líder ascendente escalar um dos tanques de guerra durante a manifestação e declarar a plenos pulmões a Liberdade.
Boris Yeltsin era um populista nato. Subia em tanques e andava de ônibus já como presidente da Rússia, mas não foi capaz de manter essa imagem pelos seus longos dois mandatos, Masha Gessen, jornalista russa, relata os anos finais de Yeltsin em seu livro “O homem sem rosto” da seguinte forma:
“Em 1999, com baixíssimos índices de popularidade, Yeltsin não passava da sombra do político que já fora. Ainda empregava várias artimanhas que o distinguiram, marcando inesperados encontros políticos, alternando entre períodos de maior e menor interferência do governo na economia, beneficiando-se estrategicamente de seu carisma, mas agora lembrava mais um boxeador cego, dando golpes a esmo, na tentativa frustrada de atingir alvos imaginários, enquanto os reais se esquivavam.”
A inflação explodiu no governo de Yeltsin, não por sua culpa e nem mais do que a Rússia estava acostumada a enfrentar no período soviético, mas o presidente não tinha a máquina de propaganda e censura que o regime antecessor possuía, além disso, os russos acostumados com uma posição de importância no mundo desde o período do império agora viam-se legados a uma posição de coadjuvante no cenário mundial, enquanto americanos, seus rivais mortais por meio século, comandavam as ações.
O ferimento no orgulho russo se agravou ainda mais quando sua tradicional aliada na Europa, a Sérvia, foi bombardeada pela OTAN ainda em 1999. A relação russo-sérvia era tão próxima que, vale lembrar, proteger a Sérvia eslava e ortodoxa-russa da católica e germânica Áustria foi o que catapultou a participação russa na primeira guerra mundial.
Mas o que levou à OTAN a atuar nos balcãs? Principalmente a posição russa. A Rússia de Yeltsin mantivera o acento permanente soviético no conselho de segurança da ONU e utilizando-se de seu poder de veto barrava qualquer tentativa das Nações Unidas de interromper o massacre de kosovares que as tropas do ditador sérvio, Milosevic, estavam praticando no país. Um acordo em março de 99 ainda foi tentado, mas no dia 24 daquele mês, os sérvios o desrespeitaram e lançaram um intenso bombardeio contra o Kosovo.
O ataque sérvio levou à uma estrondosa resposta ocidental, vindos de bases na Alemanha e Itália e até alguns porta-aviões americanos no mar mediterrâneo, mais de mil aviões de combate ocidentais alçaram voo e fizeram chover fogo sobre Belgrado e dezenas de outras cidades sérvias por longos dois meses e meio de campanha.
A Sérvia amargou a derrota e as vidas perdidas no bombardeio ocidental, mas a Rússia teve a confirmação de seus maiores temores: não eram mais relevantes, mesmo com seus vetos no conselho de segurança da ONU, a OTAN agiu, ignorando a posição russa sobre o assunto. A década de 90 é, indiscutivelmente, a década americana, mesmo que tenham sofrido um revés bastante traumático na Somália, a Rússia não podia saborear essa pequena, porém doce, vingança pois nesse mesmo período eram forçados a um acordo de paz vergonhoso na Chechênia que deixara um saldo de 4 mil soldados russos mortos e outros 18 mil feridos.
Havia um homem que se incomodou com isso, não com as vidas sérvias perdidas, mas com a fragilidade da posição que Yeltsin colocara a nação que ele via como a Terceira Roma: Vladimir Vladimirovich Putin.
Na altura, Putin era o comandante da Polícia Secreta Russa ainda muito jovem, a instabilidade do presidente o fazia promover e remover pessoas de cargos de comando com uma velocidade impressionante, esse tipo de coisa promoveu a ascensão de um político ambicioso e com traquejo social e político o suficiente para manter-se em evidência sem nunca colocar-se como alvo das explosões de fúria de Yeltsin. Gessen relata:
“Quanto mais imprevisível se tornava, mais inimigos o presidente conquistava – e mais inimigos seus se uniam. Um ano antes do fim do segundo mandato, Yeltsin se encontrava no topo de uma pirâmide instável. Suas constantes reformas no governo eliminavam várias gerações de políticos valorosos; muitos ministros e diretores de agências do governo eram agora jovens medíocres”
De alguma forma, Putin conseguiu cair nas graças de Boris Berezovsky, um oligarca russo muito próximo do diminuto grupo de apoio do presidente Yeltsin. Essa aproximação entre ambos pareceu responder a importante questão de 1999: quem sucederia o presidente. A lei proibia o atual mandatário de ter um terceiro mandato e sua baixíssima popularidade bloqueava qualquer negociação nesse sentido, era necessário encontrar um sucessor, mas o presidente temia esse homem, quem quer que fosse ele. Era necessário que a escolha do próximo presidente fosse perfeita, havia um boato ou, pelo menos uma preocupação, que o sucessor poderia iniciar uma investigação e posteriormente um processo contra o atual mandatário para aumentar a sua popularidade e desvincular sua imagem de um líder tão impopular.
O presidente tinha alguma razão em temer isso, historicamente a defenestração simbólica, ou literal, do líder anterior é quase uma tradição na Rússia. O Czar Paulo I espalhou um boato sobre a própria mãe, Catarina II, de que sua morte havia sido causada por sua devassidão sexual e que morrera em decorrência de complicações ao tentar fornicar com um cavalo. Na verdade, a Czarina teve um derrame cerebral enquanto tomava café da manhã. Outro exemplo foi Nikita Khrushchev que nem esperou seu assento na cadeira de Secretário-Geral do Partido Comunista para contar ao mundo os crimes de Stalin.
Yeltsin precisava de alguém para garantir-lhe uma aposentadoria confortável.
Podemos ver um pouco mais sobre isso no livro de Masha:
“[…]Não lhe faltavam motivos para temer desavenças com seu sucessor. No momento, ele não era apenas um presidente impopular, era o primeiro político que os russos haviam confiado, e o desapontamento que sentiam agora era amargo, tanto quanto fora inspirador o apoio que um dia lhe tinham dado.”
Nesse cenário de incerteza, Berezovsky levou o nome de Putin para o chefe de gabinete do presidente, Valentin Yumashev e com ele conseguiu a nomeação de seu protegido para o comando da mais importante agência do país, a KGB, ou melhor, a FSB. Masha Gessen relata uma apreensão de Putin em assumir o cargo, na verdade, quase uma paranóia, mas o posto o colocava muito próximo do poder para recusar.
No dia 9 de agosto daquele mesmo 1999, Vladimir Putin foi indicado pelo presidente como Primeiro-Ministro da Rússia.
Um mês depois, uma série de explosões terríveis passaram a acontecer por toda a Rússia, aparentemente sem um alvo ou método definido. Ora uma explosão em um shopping, ora um carro-bomba, ora um apartamento que irrompia em chamas, lentamente os ataques começaram a ficar mais ousados, prédios inteiros começaram a ser explodidos em horários em que os moradores estariam em casa. Quanto mais mortos, melhor. A suspeita rapidamente recaiu sobre os chechenos.
Mesmo sem uma prova cabal que vinculasse a pequena Chechênia aos atentados, Putin emitiu uma ordem pública ao exército russo de retomar os combates, o que era duplamente ilegal, primeiro porque as leis da Federação Russa impediam a utilização de soldados do exército regular dentro das fronteiras da Rússia (e Putin jamais conceberia uma Chêchenia independente como sonhavam seus líderes) e além disso, o Primeiro-Ministro não tinha poder nenhum sobre as forças armadas federais, estas respondiam diretamente ao presidente.
No mesmo dia que publicou sua ordem ilegal, Putin fez um discurso enérgico na televisão dizendo que buscaria os terroristas até no banheiro, fazendo sua popularidade disparar. Se o presidente Yeltsin o repreendeu por essas ilegalidades não o fez em público, e nem poderia, uma semana antes de Putin emitir sua ordem pública de ação, Boris Yeltsin já havia ele mesmo emitido uma ordem secreta de recomeço das hostilidades, além disso, Putin era infinitamente mais popular que o presidente e certamente já era nítido que seria seu sucessor.
Em dezembro de 1999, Boris Yeltsin renunciou ao cargo de presidente da Rússia, por lei, passando o poder para o primeiro-ministro, no caso Vladimir Putin. Em quatro meses, Putin passou de um desconhecido para primeiro-ministro e depois presidente, sem ser eleito para nenhum dos dois em uma Rússia ainda dita democrática.
Aparentemente Putin era o homem certo, no lugar certo, certo? bom… nem tanto.
“Sabe, estão dizendo que o FSB está por trás das bombas” é como Masha Gessen começa o segundo capítulo de seu livro, segundo ela essa frase fora dita pelo editor do jornal que trabalhava na época. Essa não é uma opinião impopular ou que careça de evidências, por mais “James Bond” que pareça. John Sipher, um operador da CIA por 28 anos já declarou por diversas vezes que parecia conveniente demais que bombas começassem a cair justamente quando Putin assumiu a cadeira de primeiro-ministro. Em entrevista ao History Channel ele disse: “Certamente seria útil se esses atentados pudessem ser atribuídos à Chechênia”.
Não seria difícil para o primeiro-ministro forjar os atentados. Antes de Berezovsky levar seu nome para ‘a Família’, como era conhecido o círculo íntimo do presidente Yeltsin, Putin era um coronel de uma repartição local do FSB na região de São Petersburgo. Ao conseguir sua promoção, Putin puxou muitos dos distintos cavalheiros com quem trabalhou para a administração federal do FSB. Não seria de se surpreender que esses homens devessem a ele um ou dois favores.
Certa noite, na cidade de Ryazan, um motorista de ônibus chamado Alexei Kartofelnikov, viu um casal, um homem e uma mulher carregar diversos sacos para o porão do prédio em que ele vivia, assustado com os atentados que estavam pipocando por toda a Rússia, ele chamou a polícia que logo constatou o que mais se temia: explosivos, o esquadrão anti-bombas local foi acionado e conseguiu desarmar os explosivos a tempo, Kartofelnikov ainda conseguira ver o veículo e anotar parcialmente a placa do carro, dando uma nova linha de investigação para as autoridades, tese que foi aprovada pelo ministro do interior do novo presidente recém-empossado, Vladimir Rushailo.
Minutos depois tudo caiu por terra quando Nikolai Patrushev, novo líder do FSB, foi a televisão negar tudo, dizer que tudo não passou de um exercício de treinamento de sua agência e que nos sacos havia realmente apenas açúcar, mesmo que testes preliminares houvessem confirmado a presença de hexogênio, o mesmo material explosivo utilizado em pelo menos um atentado na capital. O problema dessa versão é que os escritórios locais do FSB chegaram a mobilizar 1200 homens para auxiliar nas buscas pelos terroristas de Ryazan.
Patrushev, agora comandante supremo do FSB, era um dos homens que Putin trouxe consigo do pequeno escritório de Leningrado, atual São Petersburgo, provido muito mais por sua lealdade que por mérito, se Patrushev sabia de algo, certamente o presidente também fora informado.
Coincidência ou não, as explosões letais de 1999 acabaram com aquela em Ryazan.
Ainda assim, não há como comprovar a participação de Putin nos ataques, mas que motivos teriam os chechenos para fazê-lo? O que ganhavam com isso? Haviam conseguido um acordo bastante vantajoso do presidente Yeltsin, eram praticamente independentes e talvez pudessem, não sem algum esforço, conseguir o reconhecimento de sua independência como nação, um ataque raivoso e despropositado contra civis russos que atrairia a fúria do urso vermelho e renovaria seu ânimo para reconquistar a terra que lutaram tanto para libertar.
Não faz sentido.
De qualquer forma, a guerra serviu aos propósitos de Putin.
Masha Gessen atribui em seu “O homem sem rosto” a motivação das explosões como uma forma de garantir a eleição de Putin, mas me reservo ao direito de discordar: certamente, os atentados de setembro de 1999 tiveram sua parcela de importância nesse sentido, mas me parece bem mais provável a utilização da Guerra não para a conquista do poder pelo presidente russo, mas como uma reconquista da moral russa. Desde o fim do século XVIII a Rússia estava acostumada a ser tratada como potência, no mínimo regional, e agora ver-se incapaz de vencer a pequena Chêchenia? Isso era demais. Dar uma resposta poderosa e “trazer os terroristas à Justiça do Estado russo” não traria de volta o orgulho da era soviética, mas era um começo.
Ocupação da Chechênia e a propaganda putinista
A primeira defesa da pequena Chechênia contra a máquina de guerra russa em 1994 foi liderada pelo idealizador do movimento independentista, Džokhar Musaevič Dudaev, sua liderança carismática e habilidade política e militar foram peças chave na vitória na Primeira Guerra da Chechênia, no entanto quando as forças de Putin reiniciaram o conflito em 1999, Dudaev já havia falecido e seu país agora estava dividido entre seus sucessores que lutavam pelo controle total do Estado.
A luta na Chechênia foi o cartão de visitas de Putin na política internacional, lá ele demonstrou como jogaria e em quais aspectos era diferente de Yeltsin. A começar pelos números, o presidente Boris sempre tentou fazer parecer que a luta era uma questão menor, enviando apenas 20 mil soldados nos primeiros dias da primeira invasão e aumentando paulatinamente seus números até atingir os 70 mil homens em combate. Putin organizou sua invasão inicial com 100 mil militares, dez vezes mais do que os defensores possuíam.
Outra diferença é que Putin não se importava com baixas, sejam civis ou militares, Yeltsin aceitou fazer o acordo quando o número de mortos ultrapassou a casa dos cinco mil, ao longo de toda a Segunda Guerra da Chechênia os russos amargaram mais de oito mil mortos, mataram 50 mil civis e destruíram quase 90% de Grozny e a Chechênia foi posta de joelhos no início do novo milênio.
É nesse cenário que se apresenta Akhmad Kadyrov que assumiu o controle da Chechênia com mão de ferro e apoio russo em 2003, mas logo foi assassinado no ano seguinte por ser considerado um traidor de sua própria pátria, plano russo de colocar o filho de Akhmad, Ramzan Kadyrov, como presidente se concretizou em 2007, após um pequeno hiato da presidência de Alu Alkhanov.
Os russos, que rapidamente haviam se acostumado com a ampla liberdade de imprensa e de expressão no período Yeltsin, estranharam quando o presidente baixou uma lei que proibia os repórteres de acompanharem os soldados em operações. Uma outra questão que gerou repercussão foi o desaparecimento de Andrei Babitsky, repórter crítico da invasão que trabalhava para a Rádio Europa Livre. Babitsky simplesmente desapareceu e durante duas semanas não se ouviu um pio sobre ele.
Cito novamente Masha Gessen
“[…] Nos meios jornalísticos de Moscou, porém, corria o boato de que o repórter havia sido visto na Terrível prisão russa de Chernokozovo, na Chechênia. Em 3 de fevereiro, um dia depois de Gevorkyan e seus colegas terem começado a entrevistar Putin para a tal biografia, autoridades anunciaram que o jornalista havia sido trocado por três soldados russos que haviam sido capturados por combatentes chechenos.”
O tratamento dado a Andrei Babitsky foi um aviso de que Putin não toleraria dissidentes. Babitsky acabou salvo por uma comissão de “democratas de coração mole” como Masha os retrata. Mas interessante, nesse sentido, foi a fala da biógrafa contratada para escrever a vida do presidente pela primeira vez e contar aos russos quem era o desconhecido que os governava, Natalia Gevorkyan, que disse “percebi que era assim que ele ia governar. Que era assim que a porra do cérebro dele funcionava. Então não tive mais qualquer ilusão. Vi que era daquele jeito que entendia a palavra patriotismo – exatamente como se ensina naquelas escolas da KGB: o país é tão grandioso quanto o medo que inspira, a mídia tem que ser leal.”
Essa frase, por si só, valeria um artigo próprio, mas como não temos tempo para isso no presente texto, basta dizer que a análise da senhora Gevorkyan era precisa e a História comprovaria isso.
Por mais que Putin só tenha conseguido emplacar um governo completamente alinhado ao seu em fevereiro de 2007, a situação militar na Chechênia estava parcialmente controlada em meados do ano 2000, a Rússia chegava ao fim da sua década sombria, ao menos na visão de Putin, com um tabuleiro complicado na Europa, os países bálticos e a Polônia não perderam tempo para ingressar na Otan, a Polônia ainda em 1999 e os bálticos em 2004, Putin mantinha sob sua influência a Armênia no cáucaso, mas a Geórgia buscava uma aproximação com a Europa e o Azerbaijão voltava-se para a Turquia.
Putin mantinha sob sua influência a Bielorrússia e o Cazaquistão e já tinha algum problema para controlar a vontade ucraniana, e qualquer ação era vigiada de perto pelos olhos atentos da OTAN. O presidente russo sabia que precisaria esperar por uma oportunidade, e ela veio já em 2001, diretamente de Nova York no dia 11 de setembro.
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